15 de julho de 2010

Detalhe

Me chamo Orloff e admito que a princípio achei aquilo tudo ridículo. Ligaram de uma escola pública depois que alguns pirralhos em frenesi juraram ter visto a loira do banheiro. Já era a segunda vez naquele mês. Por via das dúvidas, me mandaram checar.

Em pé no banheiro quebrado, com os sapatos encharcados e o nariz protestando contra o fedor do lugar, pensava a respeito das loiras do banheiro que já havia encontrado. Todas ficavam ótimas molhadas, mas nunca com água da privada. Tateei o bolso do casaco atrás do crucifixo e achei melhor começar o ritual de invocação para me ver livre daquela imundície logo.

Três batidas na porta, uma Ave Maria, três palavrões — minha parte favorita — e um chamado carinhoso:

— Sai logo daí, biscate!

Nada. Apenas o som de gotas de alguma torneira precisando de reparo. Outro alarme falso. Alguém na Agência precisa tomar providências a respeito desses trotes, pensava irritado, enquanto aproveitava para aliviar a bexiga. Ergui o zíper e dei a descarga.

A descarga!

A porra do encantamento estava incompleto. Um pouco de água desceu através do cano, mas logo um refluxo aumentou a inundação no chão e me afastei bem a tempo de evitar algo saindo da privada. A loira. Cravei o crucifixo em sua pele cinza e escamosa, ao que a monstrenga escancarou a boca e os olhos de modo a me lembrar repulsivamente um peixe. Enquanto ela ressecava e seu grito desaparecia, tentava não me esquecer de comprar cigarros. Precisava de uma tragada.

5 de abril de 2010

O leprechaun

(do diário de Laura Angelim)

Nunca gostei de circos. Ainda assim, quando pequena, meu pai insistia em me levar sempre que algum ia à nossa cidade. Eu teria me negado na maior parte das vezes, não fossem suas promessas de me comprar algodão doce. Passados tantos anos, a Agência me colocou outra vez em meio às lonas e crianças escandalosas.

O trabalho começou do lado de fora da tenda principal, na fila para desafiar o mágico anão. Eu melava os dedos com açúcar — algodão doce, claro — e tentava não dar ouvidos aos comentários que as pessoas faziam a respeito da aparência do mágico. Conforme minha vez se aproximava, pude observar por mim mesma aquele homenzinho enrugado, de barba e cabelos tão ruivos, sua cartola verde-musgo e um cachimbo pendendo no canto da boca. O casaco preto e as luvas certamente não constituíam um bom disfarce. Além do mais, o banquinho sobre o qual se equilibrava denunciava seu tamanho diminuto, improvável para um homem.

No caixote à frente do mágico, três canecas emborcadas e alinhadas esperavam que alguém escolhesse alguma delas para esconder uma moeda de um real. Feito isso, o anão trocava as canecas de lugar a uma velocidade impressionante, de modo a confundir seu desafiante que precisava apontar sob qual caneca estava sua moeda. Todos, sem exceção, davam seu lugar ao próximo da fila frustrados e sem seu dinheiro.

Ainda terminava meu algodão doce quando o rapagão à minha frente, inconformado por não ter conseguido adivinhar, insistia ao mágico que revelasse qual era a caneca certa, o que o homem recusava com um sorriso torto.

Lambi o melado dos dedos, saquei a arma e estourei as três canecas. Alguns escandalosos gritaram, mas descobriu-se não haver moeda alguma sobre a mesa. O mágico olhou-me horrorizado quando apontei a arma em direção à sua cabeça. Bam! Acertei-lhe a cartola, que caiu, espalhando ruidosamente alguns punhados de moedas pelo chão.

Mandei o trapaceiro erguer os braços e o revistei em busca do passaporte. Visto vencido, como se esperava. Levei-o dali, para que fosse interrogado e depois deportado para a Irlanda. As pessoas disputavam as moedas do chão quando um arco-íris iluminou de repente o céu azul, sem qualquer sinal de chuva.

17 de fevereiro de 2010

Parada

Me chamo Orloff. Meu trabalho é caçar a escória das trevas que infernizaria você, caso tivesse a chance. A guitarra é meu hobby.

Ontem à noite toquei em uma pocilga até de madrugada e dirigia para casa quando meu celular acendeu. Mensagem: Zumbi no cemitério norte. Sei que é sua folga, mas vá averiguar, sim? A cerveja na sexta é por minha conta. Ass.: Martha. Piada! A Agência havia acabado de contratar meia dúzia de moleques novos e eu tinha que ir atrás de zumbis. Desviei o caminho e em questão de minutos estacionei em uma rua mal-iluminada ladeada pelo muro pichado do cemitério.

Pular para dentro foi relativamente fácil. Difícil foi evitar que a capa da guitarra se ralasse. Sim, levei a guitarra comigo. Ajuda a evitar eventuais problemas com coveiros; um gótico renegado seria enxotado do cemitério, no máximo, enquanto um caçador de zumbis ganharia um passe para o manicômio. Procurei inutilmente por traços do morto-vivo durante tempo suficiente para pôr fim à minha paciência. Pouco antes de decretar alarme falso e ir embora, repetidos sons de batida me levaram até onde eu queria.

O zumbi se batia contra a parede de um mausoléu e pareceu não se dar conta da minha presença. Avancei confiante quando algo me agarrou pelo tornozelo e me derrubou.

Havia mais um deles.

Enquanto ele me puxava com força e escancarava a boca, salivando, o primeiro se voltou para mim arreganhando os dentes podres em um riso debochado. Os malditos haviam me enganado. Segurei a guitarra pelo braço e bati na cabeça do zumbi até que me soltasse. Quando o outro me alcançou eu já estava de pé e bati nele até muito depois de ele cair, inerte. Com o que me derrubou fui mais breve e esmaguei-lhe o crânio de uma vez.

Trabalho feito, acendi um cigarro e voltei para o carro me decidindo sobre qual guitarra nova faria a Agência me comprar. E eles que limpassem a sujeira no cemitério.

14 de fevereiro de 2010

Justificativas

Venho aqui compartilhar certas revelações feitas a mim durante uma noite no bar que costumava freqüentar. Quero deixar claro que as duas pessoas envolvidas não me pediram silêncio — embora, confesso, também não tenham exatamente me autorizado a falar a respeito. De todo modo, acredito que não se incomodariam se mais alguém soubesse o que me contaram.

Quanto ao diário “roubado”, espero que sua dona aceite minhas sinceras desculpas e entenda que se tratou de um equívoco causado por nosso consumo excessivo de álcool. O diário permanece intacto para ser devolvido assim que houver uma oportunidade e as páginas publicadas aqui a partir dos próximos dias, intercaladas com testemunhos orais, serão somente aquelas que a própria escritora leu para mim.