27 de dezembro de 2009

Silêncio

Filomena era velha e se achava no direito de falar o que bem entendesse. Se exagerava, e a mandavam morder a língua, mordia logo a de outro. Nem doente deixou de ser assim. Até um dia amanhecer muda. Acordou desesperada, tentando chamar os filhos e netos para contar-lhes que era coisa da vizinha macumbeira, mas ninguém lhe dava atenção. Estavam todos ocupados demais com assuntos do velório.

13 de março de 2009

O Apanhador de Estrelas

Crunch! Crunch! As grandes mordidas que o menino dava na maçã faziam-se ouvir na noite silenciosa que ele contemplava da janela de seu quarto na fazenda. Sentia sono e pensava em coisas tão absurdas que poderia muito bem sonhá-las, ao invés de pensá-las. — Todas as pessoas sonham coisas absurdas, mas somente os tolos pensam coisas desse tipo — repreendeu-se, espantando um pouco o sono. O que diriam os garotos da escola, se pudessem ler seus pensamentos? Imaginou se eles poderiam, afinal eram sempre tão espertos... Crunch! Crunch!

— Ei, você aí! — a voz de alguém que cochichava quando queria mesmo gritar chegou até ele, vindo de algum lugar lá fora. — Quer parar com esse barulho? Assim você vai espantar as estrelas todas!

— Quê? — ele procurou com os olhos, até achar um bicho de pêlo grosso e marrom, usando uma regata branca e óculos escuros enormes, apesar de ser noite.

— Isso mesmo! Hoje é quarta-feira, e às quartas-feiras eu sempre como uma estrela frita. Estou tentando pegar alguma, então fique quieto, ou vou acabar sem jantar! — a criatura continuava meio gritando e meio cochichando.

— Está bem. Desculpe... Quer ajuda para pegar sua estrela?

O estranho animal ergueu um pouco os óculos escuros e apertou os olhos para olhar o menino, como que o examinando. — Seria conveniente — disse.

O menino pulou a janela para fora de casa com a facilidade da experiência, acabou de comer sua maçã e ajeitou as que ainda tinha no bolso da calça. Viu que o estranho trazia consigo uma mala, da qual lutava para tirar um objeto que lembrava muito uma caixa de ferramentas com uma escotilha em um dos lados. — O que é isso? — quis saber, enquanto via a criatura marrom arfar de cansaço pela briga com a bolsa.

— É minha invenção, o escadestelar — a luta agora era com a escotilha que não queria girar. Irritado, deu um chute e ela cedeu. Uma escada começou a se desenrolar de dentro da máquina e a crescer em direção ao céu. — Finalmente! — apoiava as mãos na cintura. — Dê-me uma das suas maçãs, sim? Para abrir o apetite.

O menino admirava impressionado a escada se perder de vista no céu escuro e percebeu quando seu pescoço começou a doer que estava quase caindo para trás. Lembrou-se de que o outro ainda estava ali quando ouviu o crunch! crunch! discreto da maçã que agora ele comia. — Por que você não se agarra à escada e sobe com ela? — perguntou à criatura.

— Ah, sim! Tornaria as coisas muito mais fáceis. Mas você não seria capaz de parar a máquina na hora certa, e eu provavelmente teria que comer a minha estrela em Marte! E o que é pior: crua! Consegue imaginar um sushi de estrela?

Os dois continuaram esperando a escada subir. — A menos que... — o bicho de pêlo marrom olhou para o menino com aquela expressão maléfica de quem faria qualquer coisa por uma estrela frita. — A menos que você subisse e apanhasse a estrela! Sim, é perfeito! Você sobe, pega a estrela, e quando quiser que eu traga a escada de volta, deixa uma maçã cair de lá de cima para me avisar! E então, o que me diz?

— Acho que tudo bem — o menino que nunca teve medo de altura respondeu um pouco inseguro.

— Ótimo, ótimo! — a criatura já o empurrava para a escada, sem sequer ter o trabalho de pará-la antes. O menino respirou fundo e saltou, segurando-se como pôde. A subida era rápida o bastante para que o vento o impedisse de olhar para cima, mas pôde ver a fazenda e a cidade diminuindo lá embaixo até desaparecer quando as nuvens começaram a surgir. Fazia muito frio, mas tentou não se lembrar disso quando se aproximou das estrelas. Pensou em pegar logo a primeira que passasse perto dele e voltar para o chão. Viu que uma se aproximava, esticou uma mão, segurando-se firme com a outra e pegou-a. A estrela pareceu surpresa, mas aquela era uma estrela feliz, e mesmo na mão do menino abriu um sorriso. O menino achou a estrela muito familiar, parecidíssima com as que ele desenhava quando era menor. Era gordinha e pequena, amarela e tinha cinco pontas. Olhou bem para ela e tentou imaginá-la frita, em um prato com arroz. Devolveu-a ao céu e atirou a maçã para dar o sinal. Logo estava de volta ao chão.

— E então? Onde está? Você conseguiu, imagino!

— Sinto muito, as estrelas estão precavidas. Elas eram ameaçadoras, e uma que eu tentei pegar por pouco não me mordeu — pôs a mão no bolso e tirou a última maçã. — Não quer mais uma para enganar o estômago?

O bicho de pêlo grosso e marrom ficou muito nervoso, guardou seu escadestelar com pouco cuidado e saiu pisando duro. Antes de desaparecer, no entanto, voltou e pegou a maçã.

15 de fevereiro de 2009

Vulto

Chovia muito. A janela do quarto rangeu longamente no meio da noite, abrindo-se e tirando um dos pequenos de seu sono. Ele se virou na cama, desejando que a manta fina com que se cobria fosse suficiente para protegê-lo do vento que agora invadia o quarto. Quando já se esforçava para tornar a dormir, foi surpreendido pelo toque de uma mão gelada e trêmula. Alarmado, espiou ao redor e deu com a irmã mais nova assustada, sentada no tapete, no vão entre sua cama e a dele, puxando-o para baixo. Acabou deixando-se levar para o chão, com pena dela. Aquele era o momento de ser legal, no dia seguinte faria troças à vontade.

A coisa tá aqui dentro... – ouviu a menina sussurrar com a voz abafada e travou de medo. Caíram sobre ele de uma só vez o frio, o cheiro da chuva e o zumbido do vento na fresta da janela. Não queria acreditar que aquilo estivesse ali. Todos o haviam convencido de que não passava de imaginação, que sonhos não tinham forma...

Um relâmpago cortou a noite e uma sombra disforme se fez ver na parede para qual os dois irmãos olhavam. Estavam apavorados, sem ter aonde ir. Encolhiam-se inocentemente na esperança de estar escondidos, o nariz da menina coçando terrivelmente por causa do pó.

Então a porta se abriu, a menina espirrou, a luz se acendeu e ouviu-se um grito que não era de criança – poderia a luz ter se acendido antes de todo o resto? Alívio. De mentira. Foi como despertar de um pesadelo que se tem acordado, com a certeza de que nenhum lugar estava perto de ser seguro.

1 de fevereiro de 2009

Boneca de Neve

Jamais confessou à família o quanto a vizinha da casa ao lado o amedrontava. Nas noites de nevasca, ele a via pálida, com galhos de laranjeira no lugar dos braços, às vezes até com uma cenoura no nariz; mais um pouco, seus olhos tornavam-se dois grandes botões negros e ela própria ficava maior e maior... Como ninguém mais percebia? Cumprimentava-a respeitosamente pela manhã e passava o dia imaginando-a se derreter para tentar espantar o medo.

25 de janeiro de 2009

Brasileiros

Os moleques da rua nunca desistiam de uma pipa. Nem o Rex. Quando o cachorro abocanhava uma, não soltava mais. A tragédia se deu quando seu dono flagrou o filho do vizinho jogar o Rex da laje, com uma pipa entre os dentes, na esperança de que ela ainda voasse. O asfalto estava quente. Cachorro quente. No espeto. Pobre Rex...