tag:blogger.com,1999:blog-65587841768867250922024-03-24T17:58:21.396-03:00Autos dos MafagafosDiógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.comBlogger14125tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-81140551112213399932012-01-30T11:05:00.003-02:002012-01-30T11:14:22.465-02:00Crime<div style="text-align: justify;"><span style="color: #999999;"><em>(do diário de Laura</em> <em>Angelim)</em></span></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Os arquivos da Agência sempre estiveram abarrotados com relatos de velhas casas mal-assombradas e não era rotina deslocarem alguém para lugares remotos devido à mera suspeita de um poltergeist. Quando se tratava da família de um conselheiro reformado, no entanto, abriam-se exceções.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">A propriedade ficava no meio do nada. A responsável pelo contato me recebeu pessoalmente, no momento em que agasalhava um idoso sobre uma cadeira de rodas — seu pai, o conselheiro aposentado da Agência, completamente paralisado após um derrame.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Os moradores precisavam deixar a residência. Era parte do procedimento. Saíram em direção ao jardim, deixando-me sozinha. Então, tirei o equipamento da bolsa e comecei a trabalhar.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">O leitor de freqüência não indicava o menor sinal de presença ectoplásmica. <em>O lugar está limpo</em>, pensei. Andei pela sala de estar, depois através de um corredor, abrindo as portas dos dois lados, na expectativa de que a leitura do aparelho sofresse alguma alteração, mas nada aconteceu.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">O final do corredor era escuro e eu tateava a parede em busca do interruptor. <em>Droga!</em> Deixei o leitor de freqüência cair. Quando me abaixei, <em>clique!</em> Uma maçaneta se destravou sozinha. Em seguida, a porta se abriu devagar, rangendo.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">O leitor foi de zero a cem em um segundo. <em>Vamos lá, Gasparzinho... O que vai ser?</em> Peguei o farolete na bolsa e entrei no que parecia um depósito, pronta para expulsar a assombração com um facho de luz. Sim, fantasmas odeiam luz.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Nenhum contato visual. Apontei o farolete em todas as direções, mas a presença se fora. </div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">De repente, som de vidro se estilhaçando às minhas costas. No piso logo abaixo de uma prateleira, encontrei um porta-retratos quebrado. A foto nele mostrava três pessoas: o velho conselheiro, sua filha, ainda adolescente, e outra menina da mesma idade.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Sobre uma prateleira logo acima, um álbum empoeirado estava a ponto de cair também. Entre fotos de família, algumas do velho sozinho com a garota.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">A inteligência da Agência investigou o caso e acabou descobrindo que a menina era uma vizinha que desaparecera e fora dada como morta anos atrás. A perícia encontrou seus ossos enterrados no terreno da propriedade e o velho foi considerado culpado pelo assassinato.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Dado seu estado, não foi feita nenhuma acusação formal contra ele. O ex-conselheiro foi deixado na casa.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Soube mais tarde que a filha o abandonou. E o fantasma não.</div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-56336066338488810212011-07-31T22:11:00.002-03:002011-07-31T22:12:21.156-03:00Halloween<div style="text-align: justify;"><span style="color: #999999;">Me chamo Orloff</span> e era minha noite de folga. Tinha saído para beber. Passavam das três e meus olhos já não eram mais os mesmos. Enxergavam apenas o suficiente para perceber os sorrisos provocantes que a ruiva do vestido preto dirigia a mim do outro lado do balcão.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">O namorado ainda não se dera conta. <em>Safada...</em> Chamei o garçom e pedi que lhe servisse outra dose do que quer que estivesse bebendo. O homem relutou, antevendo a confusão, mas minha nota de cinqüenta o fez reconsiderar.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Uísque com energético. <em>Além de safada, devia estar bem-disposta.</em> O namorado se enfureceu com meu atrevimento. Virou-se e me encarou, a pele descorada e os olhos vermelhos. <em>Maldito vampiro!</em> Não esperei para ver os caninos; fui cambaleando até lá e acertei-lhe uma garrafada no nariz.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Ele desabou no chão, urrando e se contorcendo sob os gritos aterrorizados da ruiva, seu rosto se cobrindo de vermelho com o sangue. Já o olho esquerdo, de repente era tão castanho quanto o meu. Com o golpe, devo ter arrancado a lente do palhaço fantasiado.</div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-66383888713663996572011-03-23T18:25:00.005-03:002014-01-30T23:44:56.491-02:00Cafeína<div style="text-align: justify;">
<span style="color: #999999;"><em>(do diário de Laura Angelim)</em></span><br />
<br />
Um casal de amigos foi à África, ver a Copa. Voltaram com presentes e me trouxeram uma máscara zulu horrível. Não teria pendurado aquela <em>coisa</em> na parede da sala por vontade própria, mas os pombinhos tiveram um surto de freqüentar meu apartamento e não me deram escolha. Hoje, porém, me dei conta de que havia algo errado com aquela máscara.<br />
<br />
Tudo começou com a resistência do chuveiro. Não tinha nem uma semana e queimou com um estouro durante meu banho — acredite, enxaguar o cabelo na água fria logo pela manhã em meados de julho afeta sua saúde tanto quanto seu humor.<br />
<br />
Tomei meu café da manhã entre espirros. Por causa de um deles, aliás, derramei chocolate quente no tapete novo.<br />
<br />
O dia dava indícios de que algo não estava bem. No trabalho, por exemplo, perdi um relatório de duas páginas com uma queda de energia. Houve também um <em>incidente</em> no vestiário da academia, mas foi embaraçoso e não quero falar a respeito.<br />
<br />
Voltei para casa certa de que a máscara era enfeitiçada. Entrei com cuidado para, sei lá, não escorregar e bater a cabeça, ou ter tempo de me esquivar no caso de algo cair sobre mim. Queria arrancar a coisa da parede! Inacreditavelmente, no entanto, ela simplesmente não saiu do lugar quando a puxei com toda minha força. Pensei então em quebrá-la, mas uma porção de golpes com o martelo de carne também não surtiu nenhum efeito.<br />
<br />
Passei algum tempo sentada, olhando para o sorriso malicioso talhado na madeira e atirando as pedrinhas ornamentais do vaso na minha estante em sua direção. Acertei algumas na boca e uma no olho esquerdo. Não me surpreenderia se ela começasse a cuspi-las de volta em mim.<br />
<br />
Fui fazer um café. Não podia deixar aquele objeto lá. Era contra o regulamento. Se não conseguisse remover a máscara sozinha, teria que ligar para a Agência e pedir que mandassem um especialista. Nesse caso, era uma vez noite de sono! Os caras colocariam minha parede no chão se precisassem.<br />
<br />
Encarei a máscara e tomei um gole do café. Péssimo! E o riso de madeira parecia debochar de mim. Perdi as estribeiras e joguei o conteúdo da xícara através da boca da máscara.<br />
<br />
As luzes do apartamento piscaram.<br />
<br />
Quando a energia se normalizou, a máscara africana tombou sozinha no chão e se espatifou.<br />
<br />
Não sabia se ficava mais aliviada por poder dormir ou ofendida por causa do café.</div>
Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-25597303600638408802010-07-15T14:51:00.004-03:002010-07-15T16:48:12.451-03:00Detalhe<div align="justify"><span style="color:#999999;">Me chamo Orloff</span> e admito que a princípio achei aquilo tudo ridículo. Ligaram de uma escola pública depois que alguns pirralhos em frenesi juraram ter visto a loira do banheiro. Já era a segunda vez naquele mês. Por via das dúvidas, me mandaram checar.<br /><br />Em pé no banheiro quebrado, com os sapatos encharcados e o nariz protestando contra o fedor do lugar, pensava a respeito das loiras do banheiro que já havia encontrado. Todas ficavam ótimas molhadas, mas nunca com água da privada. Tateei o bolso do casaco atrás do crucifixo e achei melhor começar o ritual de invocação para me ver livre daquela imundície logo.<br /><br />Três batidas na porta, uma Ave Maria, três palavrões — minha parte favorita — e um chamado carinhoso:<br /><br />— Sai logo daí, biscate!<br /><br />Nada. Apenas o som de gotas de alguma torneira precisando de reparo. Outro alarme falso. <em>Alguém na Agência precisa tomar providências a respeito desses trotes</em>, pensava irritado, enquanto aproveitava para aliviar a bexiga. Ergui o zíper e dei a descarga.<br /><br />A descarga!<br /><br />A porra do encantamento estava incompleto. Um pouco de água desceu através do cano, mas logo um refluxo aumentou a inundação no chão e me afastei bem a tempo de evitar algo saindo da privada. <em>A loira</em>. Cravei o crucifixo em sua pele cinza e escamosa, ao que a monstrenga escancarou a boca e os olhos de modo a me lembrar repulsivamente um peixe. Enquanto ela ressecava e seu grito desaparecia, tentava não me esquecer de comprar cigarros. Precisava de uma tragada.</div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-20230222387577940962010-04-05T12:46:00.002-03:002010-04-05T12:50:35.754-03:00O leprechaun<div align="justify"><em><span style="color:#999999;">(do diário de Laura Angelim)</span><br /></em><br />Nunca gostei de circos. Ainda assim, quando pequena, meu pai insistia em me levar sempre que algum ia à nossa cidade. Eu teria me negado na maior parte das vezes, não fossem suas promessas de me comprar algodão doce. Passados tantos anos, a Agência me colocou outra vez em meio às lonas e crianças escandalosas.<br /><br />O trabalho começou do lado de fora da tenda principal, na fila para desafiar o mágico anão. Eu melava os dedos com açúcar — algodão doce, claro — e tentava não dar ouvidos aos comentários que as pessoas faziam a respeito da aparência do mágico. Conforme minha vez se aproximava, pude observar por mim mesma aquele homenzinho enrugado, de barba e cabelos tão ruivos, sua cartola verde-musgo e um cachimbo pendendo no canto da boca. O casaco preto e as luvas certamente não constituíam um bom disfarce. Além do mais, o banquinho sobre o qual se equilibrava denunciava seu tamanho diminuto, improvável para um homem.<br /><br />No caixote à frente do mágico, três canecas emborcadas e alinhadas esperavam que alguém escolhesse alguma delas para esconder uma moeda de um real. Feito isso, o anão trocava as canecas de lugar a uma velocidade impressionante, de modo a confundir seu desafiante que precisava apontar sob qual caneca estava sua moeda. Todos, sem exceção, davam seu lugar ao próximo da fila frustrados e sem seu dinheiro.<br /><br />Ainda terminava meu algodão doce quando o rapagão à minha frente, inconformado por não ter conseguido adivinhar, insistia ao mágico que revelasse qual era a caneca certa, o que o homem recusava com um sorriso torto.<br /><br />Lambi o melado dos dedos, saquei a arma e estourei as três canecas. Alguns escandalosos gritaram, mas descobriu-se não haver moeda alguma sobre a mesa. O mágico olhou-me horrorizado quando apontei a arma em direção à sua cabeça. <em>Bam!</em> Acertei-lhe a cartola, que caiu, espalhando ruidosamente alguns punhados de moedas pelo chão.<br /><br />Mandei o trapaceiro erguer os braços e o revistei em busca do passaporte. Visto vencido, como se esperava. Levei-o dali, para que fosse interrogado e depois deportado para a Irlanda. As pessoas disputavam as moedas do chão quando um arco-íris iluminou de repente o céu azul, sem qualquer sinal de chuva. </div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com12tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-11671545228406073282010-02-17T22:29:00.008-02:002010-02-17T22:44:27.316-02:00Parada<div align="justify"><span style="color:#666666;">Me chamo Orloff.</span> Meu trabalho é caçar a escória das trevas que infernizaria você, caso tivesse a chance. A guitarra é meu hobby.<br /><br />Ontem à noite toquei em uma pocilga até de madrugada e dirigia para casa quando meu celular acendeu. Mensagem: <em><span style="color:#666666;">Zumbi no cemitério norte. Sei que é sua folga, mas vá averiguar, sim? A cerveja na sexta é por minha conta. Ass.: Martha.</span></em> Piada! A Agência havia acabado de contratar meia dúzia de moleques novos e <em>eu</em> tinha que ir atrás de zumbis. Desviei o caminho e em questão de minutos estacionei em uma rua mal-iluminada ladeada pelo muro pichado do cemitério.<br /><br />Pular para dentro foi relativamente fácil. Difícil foi evitar que a capa da guitarra se ralasse. Sim, levei a guitarra comigo. Ajuda a evitar eventuais problemas com coveiros; um gótico renegado seria enxotado do cemitério, no máximo, enquanto um caçador de zumbis ganharia um passe para o manicômio. Procurei inutilmente por traços do morto-vivo durante tempo suficiente para pôr fim à minha paciência. Pouco antes de decretar alarme falso e ir embora, repetidos sons de batida me levaram até onde eu queria.<br /><br />O zumbi se batia contra a parede de um mausoléu e pareceu não se dar conta da minha presença. Avancei confiante quando algo me agarrou pelo tornozelo e me derrubou.<br /><br />Havia mais um deles.<br /><br />Enquanto ele me puxava com força e escancarava a boca, salivando, o primeiro se voltou para mim arreganhando os dentes podres em um riso debochado. Os malditos haviam me enganado. Segurei a guitarra pelo braço e bati na cabeça do zumbi até que me soltasse. Quando o outro me alcançou eu já estava de pé e bati nele até muito depois de ele cair, inerte. Com o que me derrubou fui mais breve e esmaguei-lhe o crânio de uma vez.<br /><br />Trabalho feito, acendi um cigarro e voltei para o carro me decidindo sobre qual guitarra nova faria a Agência me comprar. E eles que limpassem a sujeira no cemitério.</div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-31845042381660026832010-02-14T20:50:00.001-02:002010-02-14T20:52:30.226-02:00Justificativas<div align="justify">Venho aqui compartilhar certas revelações feitas a mim durante uma noite no bar que costumava freqüentar. Quero deixar claro que as duas pessoas envolvidas não me pediram silêncio — embora, confesso, também não tenham exatamente me autorizado a falar a respeito. De todo modo, acredito que não se incomodariam se mais alguém soubesse o que me contaram.<br /><br />Quanto ao diário “roubado”, espero que sua dona aceite minhas sinceras desculpas e entenda que se tratou de um equívoco causado por nosso consumo excessivo de álcool. O diário permanece intacto para ser devolvido assim que houver uma oportunidade e as páginas publicadas aqui a partir dos próximos dias, intercaladas com testemunhos orais, serão somente aquelas que a própria escritora leu para mim.</div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-24501966630122930612009-12-27T22:14:00.003-02:002010-02-14T20:53:45.509-02:00Silêncio<div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#666666;">Filomena era velha e se achava no direito de falar o que bem entendesse. Se exagerava, e a mandavam morder a língua, mordia logo a de outro. Nem doente deixou de ser assim. Até um dia amanhecer muda. Acordou desesperada, tentando chamar os filhos e netos para contar-lhes que era coisa da vizinha macumbeira, mas ninguém lhe dava atenção. Estavam todos ocupados demais com assuntos do velório.</span></div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-77171909957710845832009-03-13T21:34:00.010-03:002009-12-27T22:12:08.543-02:00O Apanhador de Estrelas<div align="justify"><span style="font-family:verdana;"><span style="color:#666666;"><em>Crunch! Crunch!</em> As grandes mordidas que o menino dava na maçã faziam-se ouvir na noite silenciosa que ele contemplava da janela de seu quarto na fazenda. Sentia sono e pensava em coisas tão absurdas que poderia muito bem sonhá-las, ao invés de pensá-las. — <em>Todas as pessoas sonham coisas absurdas, mas somente os tolos pensam coisas desse tipo</em> — repreendeu-se, espantando um pouco o sono. O que diriam os garotos da escola, se pudessem ler seus pensamentos? Imaginou se eles poderiam, afinal eram sempre tão espertos... <em>Crunch! Crunch!</em></span>
<br /></span><span style="color:#666666;">
<br /><span style="font-family:verdana;">— Ei, você aí! — a voz de alguém que cochichava quando queria mesmo gritar chegou até ele, vindo de algum lugar lá fora. — Quer parar com esse barulho? Assim você vai espantar as estrelas todas!
<br />
<br />— Quê? — ele procurou com os olhos, até achar um bicho de pêlo grosso e marrom, usando uma regata branca e óculos escuros enormes, apesar de ser noite.
<br />
<br />— Isso mesmo! Hoje é quarta-feira, e às quartas-feiras eu sempre como uma estrela frita. Estou tentando pegar alguma, então fique quieto, ou vou acabar sem jantar! — a criatura continuava meio gritando e meio cochichando.
<br />
<br />— Está bem. Desculpe... Quer ajuda para pegar sua estrela?
<br />
<br />O estranho animal ergueu um pouco os óculos escuros e apertou os olhos para olhar o menino, como que o examinando. — Seria conveniente — disse.
<br />
<br />O menino pulou a janela para fora de casa com a facilidade da experiência, acabou de comer sua maçã e ajeitou as que ainda tinha no bolso da calça. Viu que o estranho trazia consigo uma mala, da qual lutava para tirar um objeto que lembrava muito uma caixa de ferramentas com uma escotilha em um dos lados. — O que é isso? — quis saber, enquanto via a criatura marrom arfar de cansaço pela briga com a bolsa.
<br />
<br />— É minha invenção, o <em>escadestelar</em> — a luta agora era com a escotilha que não queria girar. Irritado, deu um chute e ela cedeu. Uma escada começou a se desenrolar de dentro da máquina e a crescer em direção ao céu. — Finalmente! — apoiava as mãos na cintura. — Dê-me uma das suas maçãs, sim? Para abrir o apetite.
<br />
<br />O menino admirava impressionado a escada se perder de vista no céu escuro e percebeu quando seu pescoço começou a doer que estava quase caindo para trás. Lembrou-se de que o outro ainda estava ali quando ouviu o <em>crunch! crunch!</em> discreto da maçã que agora ele comia. — Por que você não se agarra à escada e sobe com ela? — perguntou à criatura.
<br />
<br />— Ah, sim! Tornaria as coisas muito mais fáceis. Mas você não seria capaz de parar a máquina na hora certa, e eu provavelmente teria que comer a minha estrela em Marte! E o que é pior: crua! Consegue imaginar um sushi de estrela?
<br />
<br />Os dois continuaram esperando a escada subir. — A menos que... — o bicho de pêlo marrom olhou para o menino com aquela expressão maléfica de quem faria qualquer coisa por uma estrela frita. — A menos que você subisse e apanhasse a estrela! Sim, é perfeito! Você sobe, pega a estrela, e quando quiser que eu traga a escada de volta, deixa uma maçã cair de lá de cima para me avisar! E então, o que me diz?
<br />
<br />— Acho que tudo bem — o menino que nunca teve medo de altura respondeu um pouco inseguro.
<br />
<br />— Ótimo, ótimo! — a criatura já o empurrava para a escada, sem sequer ter o trabalho de pará-la antes. O menino respirou fundo e saltou, segurando-se como pôde. A subida era rápida o bastante para que o vento o impedisse de olhar para cima, mas pôde ver a fazenda e a cidade diminuindo lá embaixo até desaparecer quando as nuvens começaram a surgir. Fazia muito frio, mas tentou não se lembrar disso quando se aproximou das estrelas. Pensou em pegar logo a primeira que passasse perto dele e voltar para o chão. Viu que uma se aproximava, esticou uma mão, segurando-se firme com a outra e pegou-a. A estrela pareceu surpresa, mas aquela era uma estrela feliz, e mesmo na mão do menino abriu um sorriso. O menino achou a estrela muito familiar, parecidíssima com as que ele desenhava quando era menor. Era gordinha e pequena, amarela e tinha cinco pontas. Olhou bem para ela e tentou imaginá-la frita, em um prato com arroz. Devolveu-a ao céu e atirou a maçã para dar o sinal. Logo estava de volta ao chão.
<br />
<br />— E então? Onde está? Você conseguiu, imagino!
<br />
<br />— Sinto muito, as estrelas estão precavidas. Elas eram ameaçadoras, e uma que eu tentei pegar por pouco não me mordeu — pôs a mão no bolso e tirou a última maçã. — Não quer mais uma para enganar o estômago?
<br />
<br />O bicho de pêlo grosso e marrom ficou muito nervoso, guardou seu <em>escadestelar</em> com pouco cuidado e saiu pisando duro. Antes de desaparecer, no entanto, voltou e pegou a maçã.</span></span><span style="font-family:verdana;">
<br /></div></span></span>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-22065197831899103802009-02-15T11:15:00.006-03:002009-12-27T22:12:54.820-02:00Vulto<div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#666666;">Chovia muito. A janela do quarto rangeu longamente no meio da noite, abrindo-se e tirando um dos pequenos de seu sono. Ele se virou na cama, desejando que a manta fina com que se cobria fosse suficiente para protegê-lo do vento que agora invadia o quarto. Quando já se esforçava para tornar a dormir, foi surpreendido pelo toque de uma mão gelada e trêmula. Alarmado, espiou ao redor e deu com a irmã mais nova assustada, sentada no tapete, no vão entre sua cama e a dele, puxando-o para baixo. Acabou deixando-se levar para o chão, com pena dela. Aquele era o momento de ser legal, no dia seguinte faria troças à vontade.</span></div><span style="font-family:verdana;color:#666666;"><div align="justify"><br />– <em>A coisa tá aqui dentro...</em> – ouviu a menina sussurrar com a voz abafada e travou de medo. Caíram sobre ele de uma só vez o frio, o cheiro da chuva e o zumbido do vento na fresta da janela. Não queria acreditar que aquilo estivesse ali. Todos o haviam convencido de que não passava de imaginação, que sonhos não tinham forma...</div><div align="justify"><br />Um relâmpago cortou a noite e uma sombra disforme se fez ver na parede para qual os dois irmãos olhavam. Estavam apavorados, sem ter aonde ir. Encolhiam-se inocentemente na esperança de estar escondidos, o nariz da menina coçando terrivelmente por causa do pó.</div><div align="justify"><br />Então a porta se abriu, a menina espirrou, a luz se acendeu e ouviu-se um grito que não era de criança – <em>poderia a luz ter se acendido antes de todo o resto?</em> Alívio. De mentira. Foi como despertar de um pesadelo que se tem acordado, com a certeza de que nenhum lugar estava perto de ser seguro.</span></div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com18tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-35237440247050662332009-02-01T12:41:00.002-02:002009-02-01T12:42:26.875-02:00Boneca de Neve<div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#666666;">Jamais confessou à família o quanto a vizinha da casa ao lado o amedrontava. Nas noites de nevasca, ele a via pálida, com galhos de laranjeira no lugar dos braços, às vezes até com uma cenoura no nariz; mais um pouco, seus olhos tornavam-se dois grandes botões negros e ela própria ficava maior e maior... <em>Como ninguém mais percebia?</em> Cumprimentava-a respeitosamente pela manhã e passava o dia imaginando-a se derreter para tentar espantar o medo.</span></div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com22tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-21877687117503652162009-01-25T15:51:00.002-02:002009-01-25T15:53:03.914-02:00Brasileiros<div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#666666;">Os moleques da rua nunca desistiam de uma pipa. Nem o Rex. Quando o cachorro abocanhava uma, não soltava mais. A tragédia se deu quando seu dono flagrou o filho do vizinho jogar o Rex da laje, com uma pipa entre os dentes, na esperança de que ela ainda voasse. O asfalto estava quente. Cachorro quente. No espeto. Pobre Rex...</span></div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com21tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-91274885602378099722008-12-21T14:39:00.001-02:002008-12-21T14:41:32.039-02:00Na savana de Hemingway<div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#666666;">Observava durante o recreio os outros filhotes desfilarem esnobes suas jubas de pêlo sintético. Última moda leonina italiana, à prova de molho de tomate. As leoinhas suspiravam, mas ele não dava a mínima. Achava-se melhor que aquilo tudo. <em>De que serve uma juba se você tem bafo de leão?</em> Preferia gastar a mesada com chicletes e sabia que era mais esperto.</span></div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com21tag:blogger.com,1999:blog-6558784176886725092.post-30037614937097434162008-12-18T23:24:00.002-02:002008-12-18T23:38:38.952-02:00Pulsos<div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#666666;">Os começos eram os mais difíceis para o açougueiro. Queria pedir um aumento, reclamar da pimenta, propor casamento, mas nunca sabia por onde começar. Devido a esse excesso de timidez, pediu educadamente licença à faca antes de pôr fim à sua vida miserável.</span></div>Diógenes Danielhttp://www.blogger.com/profile/09338961711778070390noreply@blogger.com28